segunda-feira, 7 de junho de 2010

Um vilarejo na Mérica

Numa propriedade de 32 hectares no interior de Garibaldi, toma forma o projeto do veterinário Luiz Henrique Fitarelli: construir o protótipo de um núcleo de colonos italianos de 135 anos atrás

Lá estão a taipa de pedra, o pé de camélias brancas, o barulho do riacho, o sino no “campanil”, as ovelhas pastando a grama úmida sob as folhas de plátano.

À volta do cenário, assume ares de realidade o sonho de um homem. Camisa de flanela xadrez e boina de feltro escura, ele caminha por entre as construções pisoteando de leve as folhas, abrindo portões e ajeitando cercas como se tudo estivesse ali desde sempre, incluindo ele próprio. Não estava. Até seis anos atrás, os 32 hectares de terreno tinham a marca do abandono. Uma só casa, aos pedaços, seria o início de um processo de restauração e base para as cinco habitações atuais, em fase de acabamento, e das outras tantas que virão.

Sem incentivo ou verbas oficiais, surge no cenário de ficção um conjunto de construções aos moldes da época da colonização italiana no Estado, um museu a céu aberto para recontar uma história iniciada há exatos 135 anos. Mais dois anos e tudo deve estar no seu devido lugar, cada um dos 6 mil objetos colecionados revivendo parte dessa trajetória. Tudo muito real.

Luiz Henrique Fitarelli, o homem do sonho, é um menino de 51 anos recém-completados. É veterinário de formação. Mas projetista, arquiteto, restaurador, historiador... por intuição. Um homem que guarda numa garrafa de vidro as bolinhas de gude de sua infância e espera a hora de dar às coisas um status adequado. Seis anos atrás, quando comprou o terreno, carregava uma ideia vaga do que seria seu museu, que ele mesmo trata, com simplicidade, de complicar.

Da Itália, da França, da Áustria vêm algumas ideias. A cada viagem para visitas a projetos semelhantes, uma mudança aqui, uma aperfeiçoada lá. Por isso, talvez, a data da inauguração ainda não esteja marcada. Vá que surja um outro anexo de última hora...

Mas o que compõe, afinal, esse conjunto de exemplares de construções italianas do final do século 19 em terras gaúchas, um local que, mesmo inacabado, já serviu até de locação para uma minissérie global (no caso, Decamerão – A Comédia do Sexo, de 2009)?

Por enquanto, o que nasce aos poucos no interior de Garibaldi, na Serra, idealizado por Fitarelli, tem:

- capela de pedra, ladeada pelo campanil (o campanário, de madeira)
- bodega (o armazém, no térreo; a residência da família, no segundo piso; o porão para produção e armazenagem do vinho)
- a ferraria
- a marcenaria e o moinho com roda d’água, ainda não instalada
- a cantina
De todos, a ferraria é a que já está mais próximo do projetado. Um dia, 20 anos depois de vendida por um familiar, Fitarelli recomprou inteira a ferraria do avô materno, Tercilio Accorsi, e a recompôs. Para reconstituí-la, teve o valioso auxílio de uma foto de 1925. A maior parte do que está ali pertenceu ao avô. Exceção ao fole gigante de couro que alimenta o fogo para forjar o ferro, comprado e restaurado por ele em detalhes, até deixá-lo em perfeito funcionamento.

Não é esse, mas outro avô, o tanoeiro Pedro Fitarelli, o principal culpado de tudo. A paixão do veterinário pela história e pela cultura da colonização italiana é genética. O avô que construía pipas de vinho jamais se desfazia de nada, contava histórias como ninguém e era dono de uma memória fenomenal. Do mesmo trajeto de 13 quilômetros que separa o centro da cidade da vila que surge na localidade de São José de Costa Real, o avô conhecia os detalhes da vida de cada família. O neto faz o mesmo: sabe a história de cada casa e de cada morador. E esmera-se na coleção de objetos que a reconte.

No sótão da cantina já construída na vila há centenas deles. Do baú desembarcado no porto de Santos trazendo as roupas e os sonhos dos imigrantes à vitrina giratória de 1914, pertencente à loja dos Paganelli e depois aos De Conto, sobrenomes comuns na região... E instrumentos usados no trabalho, na cozinha, outras peças para o raro lazer dos colonizadores da Serra...
Assim nasceu a coleção de 6 mil objetos: Luiz Henrique Fitarelli guardou primeiro, quando tinha 13 ou 14 anos, um moedor de café, o cabo de uma adaga recuperada da ferraria do avô Accorsi e um “taquari” (uma espingarda carregada pela boca), obra artesanal do tio-avô Atilio Pittol.

Aos objetos, ele dá o devido valor. Uma relação curiosa para quem extrai parte da renda de uma loja de antiguidades e oficina de restauração: à exceção da ferraria do avô, que só voltou para ele graças à persistência, Fitarelli não insiste para comprar seu acervo. Se a pessoa não quer vender o móvel ou a peça rara, fica feliz. É sinal de que ela reconhece e entende a importância das coisas.

– O objeto deve ficar no lugar dele. Mas, antes que se perca, é melhor que fique aqui – filosofa, provando não haver incoerência entre a filosofia e seu projeto de museu.

Na busca de referências e intercâmbios, a vila de Fitarelli recebeu a visita, em outubro último, da antropóloga italiana Daniela Perco, idealizadora e curadora do Museu Etnográfico da Província de Belluno, em Cesiomaggiore, norte da Itália.

Embora os projetos sejam diferentes, Daniela ficou muito bem impressionada:

– É uma realização muito importante, para mostrar às novas gerações os vários exemplos de habitações rurais e de atividades artesanais que caracterizaram a cultura dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. O museu será um sucesso, porque o lugar é muito bonito, e Fitarelli, muito apaixonado por seu trabalho.

Paixão talvez seja a palavra que melhor explique todo o trabalho do veterinário que ainda exerce a profissão, mas se voltasse atrás no tempo quem sabe fosse cozinheiro ou construtor. É paixão a palavra usada pela vizinha Odete Bettú Lazzari, 60 anos, para descrever o ousado projeto do amigo, a quem abasteceu com informações sobre a redondeza comum, esmiuçou fotos antigas e trocou ideias.

Com as fotos, aliás, ele reconstitui a própria história. Numa delas, exposta à entrada da Villa Fitarelli, sua loja de antiguidades, aparecem os avós Tercilio e Candida Accorsi em um banco, posando para eternizar o casamento. Não contente com a lembrança em preto e branco, resgatou o assento usado pelo fotógrafo José Zoppas para emoldurá-la. Dos outros avós, os paternos, a também foto de casamento narra uma quase tragédia no dia da festa: um perceptível remendo no vestido da avó revela a queda do cavalo sofrida a caminho da boda. Por pouco a cerimônia não perdeu a noiva. É com a costura desse passado que Fitarelli constrói o futuro museu.

– É fantástico o que ele está fazendo. Eu faria o mesmo se tivesse condições. Compartilhamos da mesma paixão pela preservação da história – diz a vizinha Odete, que faz sua parte conservando a culinária dos italianos na sua Osteria della Colombina, um porão recheado de memórias e comida saborosa a três quilômetros de onde Fitarelli ergue sua vila.

É também paixão o termo usado pela médica ginecologista Paula, 48 anos, com quem ele está casado há 25 anos, para elogiar o hobby-profissão-sonho do marido:

– É uma pessoa especial por ser um abnegado, por gastar o tempo e o dinheiro dele sem esperar nada em troca.

Paula percebeu que seria assim a vida inteira no segundo ano de casados, quando ele a convidou, num sábado à tarde, para resgatar uma “bibeloseira” em estilo art nouveau abandonada na Linha São Roque. A peça de madeira escura, talvez jacarandá, que enfeita o mezanino da casa estava imprestável. Mas com rigor de especialista, apesar de amador, conseguiu recuperá-la. E assim Fitarelli a conquistou, e à toda família, para seu projeto de não deixar nada se perder.

Nem que seja o sino da igreja matriz São Pedro, vindo de Vittorio Veneto (Itália) em 1908, ameaçado de virar uma amálgama de bronze depois de verificada uma rachadura. Ele ajudou a evitar que fosse vendido e, hoje, orgulha-se de vê-lo a salvo e valorizado ao lado do templo de 1924, ainda que não toque mais. Ou que seja o púlpito esculpido em cedro da mesma igreja, carcomido pelo tempo, recuperado com esmero e devolvido ao seu lugar original.

É com o rigor da dedicação, não o de especialista, que ele pretende, por exemplo, restaurar uma carroça original puxada por nove mulas, um singular meio de transporte usado para carregar até duas toneladas de produtos negociados com os agricultores, por montes e picadas, de Garibaldi a Montenegro, e trazer de volta mercadorias vendidas por comerciantes locais. Os 65 quilômetros hoje parecem poucos. Na época, uma epopeia.

Guardadas as proporções, o construtor de Garibaldi também tem lá seus trabalhos de Hércules. Para erguer a cantina, transportou 3,5 mil pedras de basalto de uma vinícola destruída por uma intempérie. Outras tantas deram forma à capela que abrigou cenas profanas protagonizadas por Deborah Secco em Decamerão. A memória da atriz global dará lugar a uma imagem de um Santo Antônio de um metro de altura recuperada de um pequeno templo do interior de Nova Bassano.
Bem em frente à capela, da sacada de madeira da bodega, o ponto mais alto do museu a céu aberto, o veterinário-historiador-construtor-sonhador vislumbra o futuro, embora sequer consiga imaginar o dia da inauguração. Mostra onde ficarão a recepção e o estacionamento, distantes das construções, onde um poste de energia com fiação aparente tem os dias contados. Ele não quer nenhuma interferência, no projeto ou na paisagem. Senão, como transportar as pessoas no tempo?

Por isso, as ferragens são originais, a viga em uma peça única que sustenta a casa é de grápia, originária de uma casa demolida, e o dinheiro, que ele não sabe calcular, vem, devagarinho, do próprio bolso, sem a burocracia dos financiamentos públicos ou das leis de incentivo. Por isso, ele mesmo põe a mão na massa, na pedra, na madeira, no ferro, na terra.

E, antes mesmo de ter seu museu pronto, já consegue a magia de transportar as pessoas no tempo. Mesmo que não estivesse ali, consegui rememorar a lida de Octavio Furlanetto, o ferreiro de minha infância, dando forma às ferramentas. Ou vislumbrar a paisagem emoldurada por ovelhas que cercava a casa de minha madrinha Metilde. E, ainda que não estivessem ali, enxergar os tamancos de madeira de tia Angelina ao lado dos degraus de pedra da casa, como se ela houvesse voltado àquela hora do estábulo. Se é isso que quer o veterinário-historiador-construtor-sonhador, reconstituir o passado e transportar as pessoas no tempo, a obra já está completa.


No blog Cultura ZH, em www.zerohora.com/culturazh   veja galeria de fotos do museu a céu aberto em Garibaldi feitas por Tadeu Vilani

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