sexta-feira, 29 de maio de 2009

Genealogia do Pão

O levain é transmitido de massa a massa


A história de todo pão de fermentação natural começa com um "pé". É assim que se chama o fermento natural, ou levain, como se diz em francês. O fermento é vivo, quer dizer, precisa ser alimentado, cultivado, e, dessa forma, sobrevive e vai sendo transmitido de pão em pão, fornada em fornada, por dias, meses, décadas, séculos a fio. Em São Paulo, existem três fermentos centenários, todos eles cultivados por imigrantes italianos. Os Franciullis, das padarias Italianinha e 14 de Julho, cultivam seu fermento há 115 anos. Os Albaneses, da São Domingos, alimentam o deles há 96 anos. E os Laurentis, da Basilicata, fazem seus pães a partir do mesmo fermento há 95 anos. Mas, afinal, que fermento é esse? Muito simples. Mistura-se farinha e água e espera-se alguns dias. Microrganismos - fungos e bactérias - vão fazer com que essa massa comece a fermentar. Esse processo não controlado produz gás carbônico e ácidos (lácteos e acéticos). Quando essa massa primordial é misturada à massa do pão, que é feita de farinha, água e sal, faz com que ela cresça e ganhe uma agradável acidez. Por muitos anos, o fermento das padarias descansava em caixas. Mas atualmente a legislação baniu a madeira das cozinhas por razões sanitárias.

Criando História

Alexandre Franciulli prepara o pão da 14 de Julho. Foto: Felipe Rau/AE

Ninguém sabe dizer ao certo como nasceu o pé de fermento da família Franciulli. "É coisa dos antigos", diz Vivian Franciulli, uma das guardiãs do fermento. Seu bisavô, um padeiro italiano chamado Antonio, desembarcou no Bexiga no século 19. Em setembro de 1896, abriu a padaria Lucânia, hoje chamada Italianinha. Antes de a loja ficar pronta, o tal pezinho já existia, pois, a grosso modo, não há pão sem fermento.Alguns meses mais tarde, a família abriu outra porta, também no Bexiga. A nova padaria foi inaugurada no dia 14 de julho de 1897, na rua 14 de julho - e seu nome não poderia ter sido outro: 14 de Julho. Alexandre Franciulli reivindica o título de padaria mais antiga da cidade para a 14 de julho. Não é, mas isso é compensado porque os pães das duas casas nasceram do mesmo pé, que, este sim, é o mais antigo da cidade.

Como o Bexiga era a terra prometida dos italianos na capital, outras famílias foram chegando e trazendo seus pés de fermento para a cidade. Quantos pés vieram não se sabe, mas dois deles sobreviveram até os dias de hoje - o da São Domingos e o da Basilicata.Em 1913, um casarão foi erguido na Rua São Domingos para abrigar a família de Domenico Albanese. Anos mais tarde, os Albaneses se mudam, mas a padaria continuou ali. O pé idem. Há quatro gerações, 96 anos, ele vem sendo refrescado duas vezes por dia, originando cerca de 20 mil pães por mês, vendidos em quase todo o País. Se o pé dos Albaneses falasse... Ele foi testemunha ocular da história. Sobreviveu ao saque histórico da padaria, em 1932; serviu ao samba paulistano (alimentando Adoniran Barbosa); acompanhou a "diáspora" do Bexiga, promovida pelo corte do bairro na construção da Av. Radial Leste; e, recentemente, quase foi assassinado por uma briga de amor, quando um casal que morava no vão do Viaduto do Café (vizinho de muro) ateou fogo no próprio barraco depois de uma discussão. Em 1914, Filippo Ponzio abriu a Basilicata. Ele já havia formado seu pé, que hoje é mantido pelo sobrinho-bisneto Vittorio Lorenti. De fala mansa, baixa e rouca, à la Marlon Brando, Vittorio, que nasceu, de fato, dentro da padaria, ensina que o pé não é somente pé. O fermento natural tem um ciclo próprio, que o preserva de fornada em fornada. Parte dele é usada na massa do pão e a outra descansa por quatro ou cinco horas, quando recebe comida - água e farinha - e vira a "planta"; outro descanso, e ele volta a ser "pé", ou fermento natural. O ciclo se repete várias vezes por dia - na Basilicata, são seis vezes, todos os dias, há 95 anos. Como todo o processo é artesanal e o fermento é sensível a muita coisa - tipo de farinha, água, golpes de vento, temperatura e umidade -, o padeiro chefe Vittorio está sempre por perto, corrigindo as proporções e os tempos. "De vez em quando temos de fazer manobras para reativá-lo, mas dá tempo, o fermento avisa. Na década de 70 houve uma sabotagem e quase perdemos o pé, mas em três semanas recuperamos nossa tradição", sussurra Vittorio, que há 55 anos não arreda o pé dali.
Basilicata - R. 13 de Maio, 614, 3289-3111
Italianinha - R. Rui Barbosa, 121, 3289-2838
São Domingos - R. São Domingos, 330, 3104
4 de Julho - R. 14 de Julho,76, 3105-3215
Luiz Henrique Ligabue, de O Estado de S.Paulo
Colaboração Lea Beraldo - www.imigrantesitalianos.com.br

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