sábado, 1 de agosto de 2009

Boccaccio para as massas

Atores da minissérie Decamerão – A comédia do sexo

A inspiração vem de histórias de um autor italiano do século 14, temas libidinosos e anticlericais declamados em versos, ocorrendo em espaço e tempo indefinidos e fabulares. O inusitado conceito da minissérie Decamerão – A comédia do sexo precisou de um pequeno teste – ou piloto, para usar um termo televisivo – antes de ganhar sua versão mais longa, que estreia nesta sexta-feira. Depois de iniciar com sucesso como um especial para a Rede Globo em janeiro, o programa vai ao ar finalmente em seu formato previsto, quatro episódios de aproximadamente uma hora. A ousadia do projeto, que tem direção e roteiro de Jorge Furtado, junta-se à da recente Som & fúria, de Fernando Meirelles, na tentativa de expandir a linguagem televisiva.

– Espero que continuem abrindo cada vez mais espaços para programas mais radicais – comenta Furtado, que diz ter acompanhado e apreciado desde o início a minissérie de Meirelles. – O mérito deles é justamente o de experimentar, independentemente do resultado artístico e comercial. O único limite da TV é a audiência. Tudo que se faz no cinema dá para fazer na televisão. Já produzimos coisas que ninguém imaginava que poderiam ser feitas, como o TV Pirata, por exemplo. Mas, como se trata de uma indústria autossustentável, a única questão é saber quantas pessoas vão assistir.

Havia suspeitas de que o exotismo da proposta estética, que põe em cena atores declamando versos, somada à indefinição geográfica/temporal e à forte carga sexual da trama, pudesse afugentar um público televisivo conservador, tradicionalmente acostumado à escola naturalista das novelas. Mas os índices do especial exibido no início do ano permitiram a Furtado e seus colaboradores (Ana Luiza Azevedo na direção e Carlos Gerbase, Adriana Falcão e Guel Arraes no roteiro) a irem ainda mais longe – é, ao menos, o que garante o cineasta.

Grande salada
O princípio segue o mesmo: uma adaptação livre de algumas das 100 – ou 101 – histórias que o escritor pré-renascentista italiano Giovanni Boccaccio reuniu entre 1349 e 1353 em seu livro Decamerão. Enquanto o especial se servira de três delas para construir sua trama, a versão estendida se apropriou de oito. Mesmo assim, não há uma única palavra de Boccaccio no programa. Diferentemente do original, que se passa nos arredores da Florença atingida pela peste bubônica na Idade Média, a adaptação de Furtado cria universo próprio, com uma linguagem verbal repleta de referências à cultura popular brasileira de todas as épocas.

– Filmamos na serra gaúcha, numa aldeia montanhosa... Eu até brinco que a minissérie é "inspirada em Boccaccio, Shakespeare e Asterix", por causa da semelhança do lugar com a aldeia do gaulês. Mas não se trata de uma época ou de um país que exista. É tipo fábula: "Há muito tempo, num lugar distante..." – esclarece Furtado. – Os figurinos e as casas foram tirados de um período entre 1800 e 1900, para remeter à imigração italiana. É uma grande salada: num momento um personagem começa a cantar.

O livro de Boccaccio se passa num contexto bem específico: a Itália pré-renascentista do século 14, na qual uma classe burguesa começa a ascender em meio ao feudalismo teocêntrico. Para fugir da peste bubônica, 10 jovens (sete mulheres e três rapazes) de Florença se reúnem num campo paradisíaco – um contraponto à cidade devastada pela doença. Entre banquetes e festas, decidem contar, a cada dia, 10 histórias para passar o tempo. As narrativas mostram personagens pouco preocupados em desrespeitar os preceitos religiosos, em atitudes anticlericais que trocam os dogmas pelo bom senso e a iniciativa – sinal evidente do surgimento de uma secularização da política, da economia e dos costumes.

Os roteiristas do programa recuperam à sua maneira algumas destas histórias. Os quatro episódios transitam entre três núcleos: Monna (Deborah Secco), uma criada que, para herdar a fortuna de seu ex-patrão Spininellochio (Tonico Pereira), casa-se com seu filho, Tofano (Matheus Nachtergaele); Filipinho (Daniel de Oliveira), um comerciante que ama sua esposa (Leandra Leal), mas que não consegue lhe ser fiel; e Isabel, que vive perturbada por sonhos eróticos com Masetto (Lázaro Ramos), mas que também não hesita em dar atenção para o Tenente (Felipe de Paula).

Liberdade na TV
– São personagens arquétipos, criados espertalhões, maridos cornos, amantes que sobem pela janela... – analisa Furtado. – Foram fontes posteriores de diversos artistas, como Molière e Shakespeare. Neste sentido, a fidelidade total não interessa, porque eles funcionam em qualquer lugar e qualquer época. Por isso, acredito que o Decamerão popular pode dar certo na TV.

O diretor, que desde o início da carreira alterna trabalhos para o cinema e televisão, afirma que sempre teve a mesma liberdade criativa nos dois veículos.

– Mesmo esta questão da autoria sendo subjetiva, no meu caso sempre consegui imprimir um trabalho autoral na TV, às vezes até mais do que no cinema – diz. – No cinema, dependendo do tamanho da produção, pode-se ficar refém da opinião de um produtor, por exemplo... Sempre trabalhei nos dois veículos e conheço a peculiaridade de cada um. Algumas coisas funcionam melhor numa sala escura e tela grande, enquanto outras numa sala com luz acesa e tela pequena. Não existem regras do que funciona num e do que funciona noutro. Cada caso é um caso.

Bolívar Torres
(© JB Online)/ ItaliaOggi

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