sábado, 29 de setembro de 2007

Gnocchi da sorte



O costume de comer gnocchi da sorte no dia 29 de cada mês, que virou tradição em São Paulo, conquista o Brasil .

Uma deliciosa superstição, lançada há alguns anos em São Paulo, espalha-se pelo Brasil. É o gnocchi da sorte. No dia 29 de cada mês, come-se essa massa para ter sorte nas quatro semanas seguintes. Embaixo do prato, coloca-se a nota de um real. Os pragmáticos substituem o dinheiro nacional pelo dólar americano. “É moeda mais forte, com futuro garantido”, explicam. Guardam a nota na carteira e só a gastam no próximo dia 29. “Quem fizer isso, sempre terá dinheiro no bolso ou no banco”, garantem.

Alguns saboreiam os primeiros sete gnocchi em pé, mastigando sete vezes cada um. Depois, sentam para comer o resto. Outros limitam a refeição aos sete. Os que esvaziam o prato fazem isso “para não desperdiçar a sorte”. Os adeptos da superstição acreditam que ela surgiu na Itália, mas não sabem precisar em que região isso ocorreu. “Talvez seja na Campania, onde fica Nápoles, ou na Sicilia, que tem como capital Palermo”, especulam. Contam uma história edificante para sua origem. Um frade andarilho chegou a uma pequena localidade e bateu à porta de um casal de velhinhos, num dia 29. Pediu um prato de comida e recebeu o único alimento que havia na casa: gnocchi. Após matar a fome, seguiu viagem e, tempos depois, voltou para contar aos velhinhos que, após comer aquele prato, sua vida mudara para melhor.

A cada dia 29, inúmeros restaurantes brasileiros já servem o prato – e a superstição alcança inclusive fast-foods e deliveries. A honra de sua introdução no país já foi reivindicada por Laura Giarelli, a quem os amigos chamavam de Lala, dona do extinto La Bettola, da RuaAmauri, em São Paulo. Ela afirmava haver conhecido o gnocchi da sorte na década de 1970, numa viagem à Argentina. Teria iniciado o preparo mensal do prato em 1979, quando seu restaurante começou a funcionar. Mas os louros da difusão da novidade pertencem à restau-rateur Mary Nigri, proprietária do Quattrino, também na capital paulista, com uma casa na Rua Oscar Freire,506, e outra na Rua Iguatemi, 150. Foi através da primeira, aberta em 1989, que consagrou na cidade o gnocchi da sorte.

Ainda hoje uma clientela fiel lota os dois restaurantes para comê-lo todo dia 29, nas versões rucola, mandioquinha e batata. “Não sou dona da tradição, mas comecei a divulgá-la”, diz ela. Mary conta que saboreia gnocchi da sorte desde a juventude, quando mo-rava com os pais, em São Paulo, influenciada por sua fisioterapeuta, cuja filha era casada com um italiano,adepto da superstição. A clientela de ambos os Quat-trino avaliza os prodígios do prato. “Muitas pessoas retornam no dia 29 do mês seguinte contando que ele ajudou a concretizar sonhos, fechar negócios, arrumar na-moro ou favorecer reconciliações”, assinala a restaurateur.

Um fazendeiro do interior assegurou ter conseguido vender uma boiada após comê-lo. Um casal que se conheceu no dia 29, no Quattrino, acabou casando e voltando para celebrar os 15 anos da filha.

Há milênios, grãos da terra que incham ou aumentam de tamanho no cozimento simbolizam fartura e trazem bom augúrio. Os do gnocchi, apesar de resultantes da mão humana, encaixam- se na categoria. Além disso, segundo os adeptos da numerologia – uma mania pagã do século XXI –, o número 29 se reporta à magia. Deriva da combinação do 2 com o 9. O primeiro representa a dualidade, a receptividade, a sensibilidade, a feminilidade, a humildade, a dependência, a ternura, a lua, a água e a prata. O outro resulta da multiplicação de tripla trindade, ou seja, de 3 x 3. Simboliza a evolução, o dinamismo, a criatividade, o impulso, a simpatia e o fogo. A soma de 2+9 é igual a 11, um dos números mais complexos e instigantes. Representa a nova era, a vanguarda, a inspiração.

Enfim, comer gnocchi da sorte no dia 29 pode ser uma superstição recente, mas agrega crenças preexistentes. Quanto à pasta saboreada na ocasião, possui história antiga. Conforme a Grande Enciclopedia Illustrata della Gatronomia (Selezione Reader’s Digest, Milão, 2000), foi provavelmente a primeira feita em casa. Nossos ancestrais a obtiveram cortando pedaços de uma massa à base de farinha e água, colocados para cozinhar em água fervente. Supõe-se que exista desde os tempos dos antigos gregos e romanos. Na Idade Média, já era conhecido com o nome atual. Em italiano, grafa-se gnocchi, plural de gnocco, que o sociólogo paulista Gabriel Bolaffi, no livro A Saga da Comida (Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2000), define como “algo como pelota, isto é, uma pelotinha de farinha amassada com água”. Em português, escreve-se nhoque. Fica parecendo tupi-guarani.

Impossível precisar a região italiana onde nasceu essa modalidade de pasta, embora o tema comporte especulações. A Grande Enciclopedia Illustrata della Gatronomia reitera que os primeiros gnocchi eram apenas de farinha e água. Depois, passaram a ser elaborados com trigo, arroz e, inclusive, com miolo de pão. Mais tarde, foram enriquecidos com espinafre, queijo, castanha, carne ou peixe. Em meados do século XVI, surgiram os gnocchi de polenta. No século XVIII, passou-se a usar a batata. Com o reforço desse tubérculo americano, a “pelotinha” se tornou popular no Vêneto e Piemonte, antes de se difundir até a Sicília. Em Verona, promove-se no Carnaval o “Bacanal del Gnocco”, com carros alegóricos e a eleição anual do “Papà del Gnocco”. Apesar do alto prestígio da batata, continuam a ser preparados gnocchi de farinha de trigo e semolina. Dessas variações, a Sicília tem uma receita exemplar. Harmoniza a farinha de trigo com ricotta de ovelha; no molho, põe uva-passa, manjericão fresco e pinoli.

Delicioso e prestigiado na Itália, o gnocchi expedicionou aos países vizinhos. Na Alemanha, existe o spätzle, surgido na Suábia, sul do país. Acompanha caça ou carne assada. Também pode ser gratinado e servido em sopas. A Hungria repete a receita, mudando o nome para galuska. Serve-o com o goulash, um ensopado de carne conhecido desde o século IX. Spätzle e galuska são feitos com farinha de trigo. No Brasil, o chef francês Laurent Suaudeau criou em São Paulo uma obra-prima que muitos copiam: gnocchi de milho verde. Cozinheiros anônimos do país desenvolveram os gnocchi de batata- doce, mandioca e mandioquinha. Certas receitas comportam misturas à massa ou recheios. O ingrediente mais comum é o queijo. Na região italiana do Friuli, colocase ameixa, cuja presença é atribuída à influência da vizinha Áustria. Mas a consagração internacional do gnocchi se deve a Auguste Escoffier (1846-1935), o chef que sistematizou a grande cozinha francesa, impulsionando seu sucesso internacional. Em Le Guide Culinaire – Memórie de Cuisine Pratique (Flammarion, Paris, 1993), sua obra-prima, ele apresenta quatro receitas de gnocchi (que grafa gnoki): au gratin, à la romaine, pommes de terre e au parmesan. Moral da história: bem elaborada, a pasta da sorte também pode ser refinada.

Fonte: Revista Gula

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