terça-feira, 14 de julho de 2009

O primeiro passo rumo à genialidade


Kimbell Art Museum/The New York Times

NO PRINCÍPIO ERA ASSIM

O Tormento de Santo Antônio: análises em laboratório finalmente comprovaram que se trata da estreia de Michelangelo


Exposição da pintura de estreia de Michelangelo, feita aos 12 ou 13 anos de idade, mostra que ele chegou tão longe porque foi o artista certo no lugar certo e na hora certa .
Quando tinha 12 ou 13 anos, Michelangelo Buonarroti (1475- 1564) usou óleo e têmpera sobre uma tela de madeira e pintou seu primeiro quadro. Chama-se O Tormento de Santo Antônio e está em exibição no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, onde ficará até 7 de setembro. A suspeita é antiga, mas só agora, depois da remoção das camadas de tinta aplicadas por antigos restauradores e das análises de raio X e infravermelho, chegou-se ao veredicto de que se trata, de fato, da tela de estreia de Michelangelo. A imagem que o artista escolheu para pintar é cópia de uma gravura feita cerca de uma década e meia antes pelo alemão Martin Schongauer (1448-1491). Há dois atrativos na exposição. O primeiro é simplesmente ver uma obra de Michelangelo. O outro é descobrir que a gravura de Schongauer, cuja cópia também faz parte da exposição, é artisticamente superior à tela de Michelangelo. Gravurista de mão-cheia, Schongauer dá mais dinamismo aos demônios que parecem impedir Santo Antônio de ascender aos céus e define-lhes os contornos com uma exatidão ao mesmo tempo aguda e graciosa. O atraente, nessa comparação, é que nem Michelangelo, nem mesmo ele, o artista genial, nasceu pronto.

Seus afrescos, como os pintados no teto e na parede do altar da Capela Sistina, no Vaticano, são icônicos, deslumbrantes. As esculturas, como Pietà, Moisés e David, são tão esplêndidas que parecem transformar mármore em carne. Mas, vendo-se de onde Michelangelo partiu – sua primeira pintura é excelente para um garoto de 12 ou 13 anos, mas imatura, tateante, promissora –, é inevitável indagar como é que atingiu mais tarde alturas tão enormes. A resposta, aparentemente, é uma soma de talento excepcional com circunstâncias históricas também excepcionais. Tanto que Michelangelo só rivaliza mesmo com seus contemporâneos – entre eles, Leonardo da Vinci (1452-1519), um dos primeiros a ver e se maravilhar com seu David, de mais de 5 metros de altura. Nem o mais favorável ambiente físico e cultural produz a genialidade de um Michelangelo ou de um Da Vinci, mas circunstâncias muito adversas podem exterminar um gênio artístico. Michelangelo teve tudo a seu favor: foi o artista certo no lugar certo (a península itálica) e na hora certa (em pleno Renascimento).

Ainda criança, fazia cópias exímias de estátuas gregas, pelas quais tinha admiração inata. Foi ajudado pela feliz coincidência de que a Itália renascentista ressuscitava os ideais e os valores estéticos do humanismo grego, com seu culto à beleza, o que favoreceria a arte de Michelangelo, ele que tinha a mesma obsessão helênica pela perfeição física, sobretudo do corpo masculino – que apreciava por razões artísticas e também nas suas escapadelas noturnas com belos rapazinhos. Até a arqueologia da época lhe foi favorável. Em 1506, arqueólogos desenterraram Laocoön, a esplêndida escultura que muitos consideram a obra-prima da Antiguidade. (Consta que Michelangelo acompanhou os trabalhos de escavação em Roma.) Em seus quase 89 anos de vida, o artista foi, quase sempre, um homem atormentado, como o Santo Antônio de sua primeira pintura, mas, como que para compensá-lo dos demônios pessoais, em seu tempo, mais que nunca, a arte permeou a vida.

Estava na política, na diplomacia, na vida militar, na gastronomia, na moda, na religião. Os ricos e poderosos, dos papas de Roma ao clã dos Médici em Florença, buscavam distinção social pela arte. Os principais pontífices do tempo de Michelangelo – Júlio II, Leão X, Clemente VII e Paulo III – competiram pelo título de o maior protetor das artes e lhe fizeram encomendas que definiriam sua carreira, como os afrescos da Capela Sistina e a monumental escultura de Moisés – para alguns críticos, sua maior obra-prima. Certa vez, em busca de uma explicação para seu próprio fenômeno, Michelangelo disse, brincando, que tudo se devia ao seu precoce convívio com o mármore, pois sua ama de leite, coincidentemente, era filha e esposa de cortadores de mármore. Quem vê O Tormento de Santo Antônio constata que era, mesmo, só uma brincadeira.
André Petry, de Nova York
(© Veja)

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