Ítalo Calvino
Como crítico, Ítalo Calvino é um ambientalista (se me permitem a metáfora) da literatura. Especializa-se no desenho, como disse na "Apresentação", das "linhas gerais" do jardim da arte, para que a água dos lagos não se deixe poluir pelo marketing, o consumismo e as adoções escolares. Por outro lado, desentranha do passado recente (em particular da grande literatura do século 19) a planta baixa da "cultura" literária, para que os andares ainda a construir da literatura não levem o combalido prédio da tradição a se esboroar, como se fosse edifício sob a responsabilidade de Sérgio Naya. Numa época em que, para o simples agrado das rentáveis amenidades dos meios de comunicação de massa, se desmata criminosamente a literatura, Calvino é uma Marina da Silva.
Aliás, Calvino não camufla a fúria quando depara com ficcionistas que tentam copiar as facécias popularescas da arte cinematográfica. No ensaio "Diálogo entre dois escritores em crise", reflexão dialógica sobre os impasses da ficção hoje, Calvino não titubeia: "Onde passa o cinema não pode crescer mais um único fio de grama. Muitos escritores ainda teimam em escrever romances concorrendo com os filmes e só conseguem alcançar resultados poeticamente pífios". Se em termos vanguardistas não esposa o "marco zero" dos futuristas, em matéria de estética ficcional é claramente a favor de terrenos férteis e improdutivos, à espera do cultivo laborioso: "O romance é uma planta que não cresce em território já explorado, precisa de terra virgem onde deitar suas raízes". O cavalo de Átila do cinema contra os sem-terra (MST) do romance.
Nessa linha de atuação crítica, o tripé que sustenta os ensaios de Assunto encerrado são o indivíduo, a natureza e a história (nessa ordem). Ao analisar os protagonistas dos romances de Leon Tolstoi, afirmará que é "na relação entre esses três elementos que consiste aquilo a que podemos chamar de épica moderna". Os três elementos permanecem firmes e resistentes no pós-guerra, mesmo frente ao cataclismo que representou a entrada em cena da école du regard, liderada por Michel Butor e Alain Robbe-Grillet. Foi, portanto, a leitura do romance Guerra e paz que fundamentou e serviu a Calvino para melhor explicitar o modo como o fio condutor tripartido – indivíduo, natureza e história ordenou sua genealogia crítico-literária: "Há um homem com sua consciência de si, da finitude de sua vida, há a natureza, como um símbolo de vida ultraindividual que houve e haverá depois de nós, há a história, seu fluir, sua busca por um sentido, seu entretecer-se de nossas vidas individuais, das quais passa a fazer parte o tempo todo".
O encanto por personagens
Estudantes habituados à lição poderosa dos grandes críticos literários, que se abalizam pelo conhecimento das teorias sociológicas ou dos marxismos ocidentais, logo sentirão que, discreta e indiscretamente, Calvino veio para baralhar os fundamentos clássicos dos estudos universitários brasileiros, ditados pelo binômio literatura e sociedade.
Em primeiro lugar, pela introdução de questões relativas ao papel capital do indivíduo na construção da sociedade. Essa proposta, que nos conduz aos pressupostos defendidos por Louis Dumont em O individualismo, acaba por oferecer a Calvino o modus operandi de leitura dos clássicos da modernidade, que levanta âncora e ganha o largo na análise dos complexos protagonistas criados pelo romance do Oitocentos. Seus ensaios começam, se alongam e terminam mais pelo encanto por personagens e menos pelo fascínio por tramas. Nessa linha, as observações sobre a introdução do personagem criança no romance são admiráveis e demonstram o olhar penetrante e o fino poder de análise do crítico. O interesse pelos meninos personagens, escreve ele, visa a demonstrar que, na postura de descoberta e de teste a partir do zero de vida, está traduzida a "possibilidade de transformar toda experiência em vitória, como só é possível para as crianças". Não é o personagem Qfwfq, em nada infantil, mas primevo, que salta aos olhos do leitor de As cosmicômicas?
Por conta própria, acrescentemos que o olhar de Calvino, antes de ser o do sociólogo de plantão, é o do etnólogo ao modo de Lévi-Strauss. Para este, por exemplo, a ilha de Manhattan é a paisagem do Novo Mundo que se foi automodelando – na escala oferecida pela natureza majestática como metrópole. Naquela ilha, o homem deixou de ser a referência do urbanismo. A capital do século 20 não estava mais sendo construída à nossa medida, como as cidades europeias, mas à medida do selvagem e inóspito território que foi sendo desbravado a partir dos grandes descobrimentos. Árvore e cimento armado têm algo em comum, cujo segredo compete a nós desvendar para que a natureza se perpetue com nossa presença predadora.
Enfim, por recusar a estabelecer a possibilidade de um sujeito coletivo – as classes sociais –, que ditaria inexoravelmente o fluir e o sentido da história. De maneira ardilosa, Calvino dirá que, "na lírica, o termo história está implícito no eu do poeta". Não queremos dizer que é por pedantismo ou conservadorismo que o ficcionista e o crítico menosprezam as questões propostas pela leitura sociológica do romance ou do poema. Sua motivação é outra e menos ambígua do que pode parecer à primeira vista. Ei-la: "Também o ‘romance de denúncia’ dos problemas sociais está com seus dias contados. A política e a economia agora precisam de pesquisas documentadas e de análises baseadas em dados e cifras, e não de reações sentimentais e emocionais".
Ariosto e Pavese
Natural, pois, que Ítalo Calvino eleja como marcos da literatura italiana Ludovico Ariosto, no século 16, e Cesare Pavese, no século 20. Ambos são seu espelho, espelho de sua alma e de seu estilo. Inicialmente, fiquemos com Ariosto, a quem Calvino opõe de maneira singular Maquiavel. Glosemos uma passagem magnífica do ensaio "Três correntes do romance italiano de hoje". Ariosto é o "poeta tão absolutamente límpido, divertido e sem problemas, mas ainda assim, no fundo, tão misterioso, tão habilidoso em ocultar a si próprio". Ele é o poeta incrédulo "que tira da cultura renascentista um sentido da realidade sem ilusões". Continua Calvino: "Enquanto Maquiavel, munido do mesmo desencanto da humanidade, funda uma dura ideia de ciência política, Ariosto teima em desenhar uma fábula..." O conceito do cientista contra a metáfora do artista – nada mais atual.
Como crítico, Ítalo Calvino é um ambientalista (se me permitem a metáfora) da literatura. Especializa-se no desenho, como disse na "Apresentação", das "linhas gerais" do jardim da arte, para que a água dos lagos não se deixe poluir pelo marketing, o consumismo e as adoções escolares. Por outro lado, desentranha do passado recente (em particular da grande literatura do século 19) a planta baixa da "cultura" literária, para que os andares ainda a construir da literatura não levem o combalido prédio da tradição a se esboroar, como se fosse edifício sob a responsabilidade de Sérgio Naya. Numa época em que, para o simples agrado das rentáveis amenidades dos meios de comunicação de massa, se desmata criminosamente a literatura, Calvino é uma Marina da Silva.
Aliás, Calvino não camufla a fúria quando depara com ficcionistas que tentam copiar as facécias popularescas da arte cinematográfica. No ensaio "Diálogo entre dois escritores em crise", reflexão dialógica sobre os impasses da ficção hoje, Calvino não titubeia: "Onde passa o cinema não pode crescer mais um único fio de grama. Muitos escritores ainda teimam em escrever romances concorrendo com os filmes e só conseguem alcançar resultados poeticamente pífios". Se em termos vanguardistas não esposa o "marco zero" dos futuristas, em matéria de estética ficcional é claramente a favor de terrenos férteis e improdutivos, à espera do cultivo laborioso: "O romance é uma planta que não cresce em território já explorado, precisa de terra virgem onde deitar suas raízes". O cavalo de Átila do cinema contra os sem-terra (MST) do romance.
Nessa linha de atuação crítica, o tripé que sustenta os ensaios de Assunto encerrado são o indivíduo, a natureza e a história (nessa ordem). Ao analisar os protagonistas dos romances de Leon Tolstoi, afirmará que é "na relação entre esses três elementos que consiste aquilo a que podemos chamar de épica moderna". Os três elementos permanecem firmes e resistentes no pós-guerra, mesmo frente ao cataclismo que representou a entrada em cena da école du regard, liderada por Michel Butor e Alain Robbe-Grillet. Foi, portanto, a leitura do romance Guerra e paz que fundamentou e serviu a Calvino para melhor explicitar o modo como o fio condutor tripartido – indivíduo, natureza e história ordenou sua genealogia crítico-literária: "Há um homem com sua consciência de si, da finitude de sua vida, há a natureza, como um símbolo de vida ultraindividual que houve e haverá depois de nós, há a história, seu fluir, sua busca por um sentido, seu entretecer-se de nossas vidas individuais, das quais passa a fazer parte o tempo todo".
O encanto por personagens
Estudantes habituados à lição poderosa dos grandes críticos literários, que se abalizam pelo conhecimento das teorias sociológicas ou dos marxismos ocidentais, logo sentirão que, discreta e indiscretamente, Calvino veio para baralhar os fundamentos clássicos dos estudos universitários brasileiros, ditados pelo binômio literatura e sociedade.
Em primeiro lugar, pela introdução de questões relativas ao papel capital do indivíduo na construção da sociedade. Essa proposta, que nos conduz aos pressupostos defendidos por Louis Dumont em O individualismo, acaba por oferecer a Calvino o modus operandi de leitura dos clássicos da modernidade, que levanta âncora e ganha o largo na análise dos complexos protagonistas criados pelo romance do Oitocentos. Seus ensaios começam, se alongam e terminam mais pelo encanto por personagens e menos pelo fascínio por tramas. Nessa linha, as observações sobre a introdução do personagem criança no romance são admiráveis e demonstram o olhar penetrante e o fino poder de análise do crítico. O interesse pelos meninos personagens, escreve ele, visa a demonstrar que, na postura de descoberta e de teste a partir do zero de vida, está traduzida a "possibilidade de transformar toda experiência em vitória, como só é possível para as crianças". Não é o personagem Qfwfq, em nada infantil, mas primevo, que salta aos olhos do leitor de As cosmicômicas?
Em segundo lugar, por ter substituído a análise da problemática social engajada pela responsabilidade do homem frente à natureza, que nos precedeu e certamente nos sucederá. Sua análise dos romances de Honoré de Balzac é paradigmática, pois é o francês "que descobre a vitalidade natural quase biológica, da grande cidade". A observação certeira do ambientalista vai direto ao clima e aos temas caros à prosa balzaquiana, dada até então como mera precursora do realismo: "Caminhos equívocos, salões luminosos, sórdidos entresols, prisões, casas de aluguel, são descritos com o vigor admirado – que não raro transcende em retórica – com que Bernardin de Saint Pierre ou Chateaubriand saudavam as florestas das Américas".
Por conta própria, acrescentemos que o olhar de Calvino, antes de ser o do sociólogo de plantão, é o do etnólogo ao modo de Lévi-Strauss. Para este, por exemplo, a ilha de Manhattan é a paisagem do Novo Mundo que se foi automodelando – na escala oferecida pela natureza majestática como metrópole. Naquela ilha, o homem deixou de ser a referência do urbanismo. A capital do século 20 não estava mais sendo construída à nossa medida, como as cidades europeias, mas à medida do selvagem e inóspito território que foi sendo desbravado a partir dos grandes descobrimentos. Árvore e cimento armado têm algo em comum, cujo segredo compete a nós desvendar para que a natureza se perpetue com nossa presença predadora.
Enfim, por recusar a estabelecer a possibilidade de um sujeito coletivo – as classes sociais –, que ditaria inexoravelmente o fluir e o sentido da história. De maneira ardilosa, Calvino dirá que, "na lírica, o termo história está implícito no eu do poeta". Não queremos dizer que é por pedantismo ou conservadorismo que o ficcionista e o crítico menosprezam as questões propostas pela leitura sociológica do romance ou do poema. Sua motivação é outra e menos ambígua do que pode parecer à primeira vista. Ei-la: "Também o ‘romance de denúncia’ dos problemas sociais está com seus dias contados. A política e a economia agora precisam de pesquisas documentadas e de análises baseadas em dados e cifras, e não de reações sentimentais e emocionais".
Ariosto e Pavese
Natural, pois, que Ítalo Calvino eleja como marcos da literatura italiana Ludovico Ariosto, no século 16, e Cesare Pavese, no século 20. Ambos são seu espelho, espelho de sua alma e de seu estilo. Inicialmente, fiquemos com Ariosto, a quem Calvino opõe de maneira singular Maquiavel. Glosemos uma passagem magnífica do ensaio "Três correntes do romance italiano de hoje". Ariosto é o "poeta tão absolutamente límpido, divertido e sem problemas, mas ainda assim, no fundo, tão misterioso, tão habilidoso em ocultar a si próprio". Ele é o poeta incrédulo "que tira da cultura renascentista um sentido da realidade sem ilusões". Continua Calvino: "Enquanto Maquiavel, munido do mesmo desencanto da humanidade, funda uma dura ideia de ciência política, Ariosto teima em desenhar uma fábula..." O conceito do cientista contra a metáfora do artista – nada mais atual.
Terminemos com Cesare Pavese, que serve a Calvino para definir com clareza e justiça o que entende por estilo, valor maior na sua literatura: "estilo não é a sobreposição de uma cifra e de um gosto [à linguagem], mas escolha de um sistema de coordenadas essenciais para expressar nossa relação com o mundo". O estilo ainda é o homem. A maior tarefa do crítico Calvino é a de desentranhar da análise dos personagens a personalidade de seu criador.
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