sábado, 1 de agosto de 2009

A perda do idioma italiano em Mato Grosso do Sul

Pouco se tem falado sobre a imigração italiana em Mato Grosso do Sul. Os anais do país registram poucas informações, às vezes nenhuma, a respeito do assunto. Os estudos mais fundamentados foram desenvolvidos por universidades de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul de modo que o jornalismo do estado ficou sem respaldo científico para elaborar matérias com dados mais organizados e precisos.

Mato Grosso do Sul é um estado com dois milhões e trezentos mil habitantes. Destes, quatrocentos mil são ítalo-descendentes e italianos. Aproximadamente 5% da população. Somente em Campo Grande, capital, vivem duzentos mil, a começar pelo governador do estado que é italiano e o prefeito do município que é ítalo-descendente. Depois temos reitores de Universidades, diretores de hospitais, diretores de Museus, representantes eclesiásticos, empresários do setor frigorífico, do comércio, turismo, gastronomia e demais segmentos da sociedade, que são italianos ou ítalo-descendentes. Embora se tenha congregado, nesta região, um número relevante de italianos que tentam preservar um legado cultural, por meio de associações, grupos de danças, um Centro Cultural (que promove cursos de culinária, cursos de língua, câmbios de produtos e serviços, feiras multicoloridas entre outras coisas) os falantes do idioma italiano limitam-se a um contingente de, no máximo, duas mil pessoas.

A consciência da importância de um idioma para se alcançar a compreensão de uma cultura é quase nula. Os que se iniciaram na linguagem fizeram-no por interesses divergentes. A maioria para conseguir cidadania italiana, já que há uma exigência por parte da embaixada. Poucos se dão conta de que a língua e a cultura são inseparáveis e, o idioma não é apenas um instrumento de comunicação. Cultura, pensamento e linguagem se inter-relacionam de tal forma que um interfere no outro sendo fatores igualmente determinantes para a aproximação ou afastamento da nação de origem. O que suscita uma pergunta, por que a perda do idioma foi mais acentuada nesta região do Brasil? Uma questão que intriga, mas não é difícil de ser respondida.

Os italianos chegaram aqui no final do século XIX e início do século XX, influenciados pelas terras doadas pelo governo com o intuito de povoar o extenso estado de Mato Grosso que, no final da década de 70, foi dividido em dois, ficando Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Parte desses imigrantes já habitava o sul e sudeste do Brasil e migraram para o sul de Mato Grosso em busca de melhores condições econômicas. Outra parte veio da Itália com destino ao Uruguai e Argentina, mas, por conta da navegação nos rios Paraná, Paraguai e Cuiabá, acabaram fixando-se no estado. Não foram raros os casos em que famílias acabavam se dividindo, ficando alguns membros nos países do Prata e outros no Mato Grosso. Desembarcavam em Corumbá, Aquidauana, Coxim, Cáceres, Miranda, Cuiabá, entre outras localidades, que ofereciam amplo campo de trabalho para todos. O contingente de imigrantes italianos para esta região foi tão significativo que em 1892 foi fundada a “Sociedade Italiana de Beneficentes” (Societá Italiana di Instrutione-Beneficiência-Fratellanza), uma entidade que se fortaleceu e chegou a construir na Praça da República, em Corumbá, um suntuoso prédio para sua sede própria e que, posteriormente, foi ocupado pelo Governo Federal durante a II Guerra Mundial (1939/1945). Também, em 1914, instalou-se em Corumbá o Consulado da Itália para dar suporte a toda essa gente.

Ligados a terra, como camponeses que antes foram, os italianos tiveram que se adaptar a um outro tipo de cultivo: a atividade pecuária. Considerando que as propriedades para a criação de gado exigiram maior espaço, e, considerando também a extensão de um estado ainda por povoar, as famílias de imigrantes foram se isolando. A falta de estradas, pontes, o transporte precário e outros fatores que envolviam a comunidade da época, contribuíram para que os italianos se integrassem à cultura brasileira, deixando de exercitar com regularidade a língua de partida. Muitos prosperaram rapidamente, deixando, em segundo plano, a idéia de voltar à pátria. Outros passaram por dificuldades financeiras, mas mantiveram-se fortes e persistentes. Eram religiosos e desenvolviam explicações plausíveis para justificar a presença italiana no cerrado de superfície plana recoberta por árvores retorcidas. Era a vontade de Deus. Debaixo de um céu claro e cintilante, o calor incomodava não apenas durante o dia, mas também à noite, quando uma chama, dentro de um bojo de lampião, iluminava os troncos das árvores e as faces esculpidas de esperança de que dias melhores viriam.

Irene Bizotto, empresária do ramo de turismo, conta que tanto a família do pai (Bizotto) como a da mãe que é Lolatto, vieram do norte da Itália, da região de Vicenza e se estabeleceram aqui com o propósito de “juntar algum dinheiro” e mais adiante voltar, mas nunca algum deles voltou. Conta ela que eram todos muito batalhadores e dinâmicos. As avós tinham um traço matriarcal muito latente e conduziam a família com mãos de ferro. Eram fortes, não admitiam a melancolia provocada pela lembrança de uma possível felicidade perdida. Qualquer tendência à autocomplacência era podada rente à raiz. Dizia a avó paterna que o céu era o mesmo em qualquer parte. Na verdade, os imigrantes precisavam ser resistentes e para isso, buscavam conforto em qualquer verdade pronta. Irene declara que compreende a língua italiana, mas não fala. Diz que o plurilinguismo foi um dos principais fatores para o esquecimento da língua. Em seu caso, as duas famílias falavam dialetos diferentes e não conseguiam estabelecer uma comunicação eficaz entre si, de modo que o idioma português foi logo tomando todos os espaços. Conta também que amigos que, esporadicamente, visitavam sua casa, foram abolindo, gradativamente, o idioma de suas conversas. De um modo geral, os imigrantes que se fixaram aqui eram pessoas simples, com baixo nível de escolaridade, vivendo as condições sócio-econômicas prevalentes no norte da Itália e, consequentemente, só falavam a língua restrita ao lugar de onde vieram.

Já o ex-senador da república, José Fragelli in Os italianos em Mato Grosso (PÓVOAS, Lenine C., 1989) diz que a avó, nascida em Livorno, cidade adiantada, com indústria naval e outras fábricas, não só sabia ler e escrever como seguiu lendo com regularidade e foi freqüentadora da Ópera na Itália. Cantava longos trechos de variadas óperas enquanto trabalhava. Seu avô, Giuseppe Fragelli passou antes pelo Uruguai e depois fixou-se em Mato Grosso do Sul. Foi o maior proprietário de casas e prédios em Corumbá, além de sua descendência fazer parte do mais notável círculo político do Brasil. A língua italiana, como na maioria das famílias, foi sendo esquecida pelos mais velhos por falta de um ambiente para a sua manutenção. O que, consequentemente, implicou na identidade cultural. Os filhos dos imigrantes, imersos na cultura popular brasileira, foram influenciados pelos programas de rádio, literaturas, escolas, de forma que eram pressionados a falar o português e, com o tempo, já não conseguiam falar a língua de origem.

O aprendizado e a manutenção de determinada língua fazem parte do fortalecimento dos laços. Segundo o teórico Bakthin, “As linguagens são inseparáveis das visões de mundo e dos seus portadores vivos”, o que significa que, ao se adotar uma nova língua, adota-se também uma nova forma de ver o mundo. Uma língua faz o pensamento dos falantes manter-se voltado para o lugar cultural de origem, de forma que as palavras vão ganhando vida pelo espírito com que é falada, pela veia que pulsa o pensamento.

Quando se perde uma língua, perdem-se também as idéias que vinham sendo retransmitidas ao longo dos séculos, perdem-se as intuições poéticas dos mais antigos, perde-se também o desejo de nomear coisas, de invocar nomes, de dizer verdades e ouvir as verdades que nos dizem. Deixa-se de costurar, naquela língua, os retalhos do conhecimento que vestiu uma cultura. A perda de um idioma leva consigo intermináveis combinações, méritos, modos, mímicas, mágicas e toda uma musicalidade advinda de sua origem. Despertar a memória dessa linguagem esquecida, do êxtase que repousa, como que hibernado nos corações adormecidos é tarefa para os mais jovens, dos que vêem no idioma um âmbito que não se pode medir ou quantificar, um “lugar” onde se podem encontrar os seus semelhantes, como é o caso do Sr. Maurizio Vito Papa, presidente do Centro Cultural Italiano – CCI, e da Câmera de Comércio Ítalo-Brasileira do estado e que, há cinco anos no Brasil, desenvolve um trabalho de resgate, como nunca feito antes, em prol da cultura italiana. Talvez, daqui a algum tempo, o quadro apresente alguma mudança. No momento, o que se pode afirmar é que a cultura italiana influenciou muito o estado de Mato Grosso do Sul com toda sua tradição, no entanto, sobre o idioma, o que podemos dizer é que viveu aqui, respirou os ares sul-mato-grossenses, moveu-se com orgulho e dignidade, nadou em nossas águas, inscreveu-se em nosso tempo e, com ele, fundiu-se, dissolveu-se, desaparecendo deste território, silenciosamente.




Lucilene Machado




Colaboração Lea Beraldo http://www.imigrantesitalianos.com.br/


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