Muito se escreveu sobre a formação do povo brasileiro. Os antropólogos dizem que foi moldado à base da convivência com outros povos formando o maior país sul americano. As promessas fantásticas dos promotores e armadores contratados pelo império brasileiro para o transporte de imigrantes em massa para um Brasil desconhecido, país de uma densidade demográfica, além de rarefeita, litorânea. Os promotores arrebanhavam os habitantes das vilas e do interior agrícola italiano, marcados pela pobreza e ausência de trabalho. As naves seguiam repletas de humanos atravessando o Atlântico. Era importante completar a carga da nave. A pobreza servia de lastro nos compartimentos inferiores para a travessia segura do mar. Transcontinentados os imigrantes construíram no imaginário um mundo novo, a terra das mil maravilhas onde a riqueza estava à flor da terra e ao alcance de todos. A esperança do homem era construir o seu próprio futuro e se ver, ele mesmo, como pessoa capaz de produzir o seu sustento e acumular a fortuna suficiente e retornar ao país de origem com o poder de transformar-se em proprietário do seu próprio chão. Muitos perderam o contato com a terra dos seus. O lamento das nonas se fazia presente nos encontros ocasionais. A troca de correspondência com os que ficaram minguava com o passar dos anos. Porém, traziam dentro de si a saudade da terra de origem. O tempo foi implacável e se encarregou de cortar os laços da terra natal.
Os imigrantes do continente europeu, africano e asiático somados aos nativos caldearam um povo singular sob um mundo lingüístico novo. Predominava no mundo novo uma língua que lembrava ritmo e cadência. As palavras sonoras pareciam notas musicais. O domínio era difícil. A língua de origem corria solta. A convivência com pessoas de outras regiões e países era percebida pelo uso do falar de palavras secas e duras dos polacos. Duro era também entender as pessoas que traziam os diversos dialetos itálicos: cremoneses, mantovanos e milaneses. As palavras cortadas e cheias de consoantes dos poloneses era sinal de que muitos mundos estavam se fundindo e fazendo nascer um novo lugar – um novo país. Para a população de Nova Veneza não foi muito diferente. A convivência com os comerciantes dos campos de cima da serra, homens de uma indumentária esvoaçante, pareciam catavento no giro lento em noites de inverno. Era o início da fusão de duas culturas com profundas raízes locais e outras extracontinentais.
O gaúcho se apresenta aos novos habitantes em traje singular e único. Pés enfiados em botas de cano sanfona circundadas por esporas roseta, bombachas com costuras laterais sulcando o pano, cinta larga abraçando uma barriga proeminente enfileirando balas calibre 38, ladeado por uma brilhante arma cravada no coldre, adaga embainhada na cinta, camisa folgada de manga longa com abotoaduras prateadas nos punhos cobrindo braços peludos, casaco de bolsos pendendo para frente, repletos de apetrechos pessoais, lenço branco contornando um pescoço marcado com gogó saliente, chapéu de abas grandes, barbicacho a meio queixo exibindo um rico bigode saliente e uma enorme cabeleira escondida sob o chapéu de pano. À noite na pousada as esporas riscavam o chão em círculos. A celebração bailada da fartura se realizava nas noites dos cataventos onde o gaúcho serrano bailava horas e horas na sala grande da casa de pouso ao som da sanfona de botão do acendedor de lampiões.
Os Gaúchos serranos eram calejados criadores de gado e bons vendedores de queijo e carne seca. Carregavam um linguajar pomposo misturando-se ao talian trazido pelo imigrante. A convivência com os homens do campo, além de fascinante e singular, era agradável.A geografia ondulada e entrecortada pelos montes verdes, quebradas íngremes que se inclinam até o Rio das Antas dava a sensação de um mundo sem fim. O horizonte distante dos campos da Vacaria abraçava o céu. O infinito verde-amarelo se encontrava com o infinito azul iluminado por um sol mais brilhante do que o alpino. Este o cenário na década de l895, onde crescia uma nova Veneza. Assim nasceram as condições para a ruptura entre o velho e o novo continente. A distância alimentava a saudade do imigrante e as lembranças de um passado sofrido para quem ficou. Para quem partiu para o novo mundo o trabalho, a celebração do sucesso e a glória.
* Artigo publicado pelo Jornal Gazeta de Caxias em 19/09/2009.
*Imagem: Antiga residência da família Mioranza em Nova Veneza - Trav. Alfredo Chaves. Flores da Cunha/RS, contruída no final do Séc. XIX. Foto: Gissely Lovatto Vailatti, 18/09/2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário