Como a postagem anterior mencionava a pastiera napoletana, encontrei esta história e receita que espero possa agradar aos leitores.
Leila Ossola
Blog do Ale'Italia
A doçaria napolitana é uma doçaria pesada, de gente que não brinca à mesa. Derivada da inventividade de um povo cuja miséria proverbial o levou, sempre, a respeitar aquilo que dá além de força e saúde, uma noção de saciedade. Nenhuma preparação aerada e delicada existe entre os doces napolitanos: somente coisas substanciosas. Naturalmente esses doces, de sabores e perfumes bastante pesados, podem não agradar a todos e sem dúvida não agradarão se forem comidos em jejum ao invés de sobremesa ao final de uma refeição, a menos que a pessoa não seja realmente um bom garfo, como é o napolitano em geral. De qualquer maneira, a doçaria partenopea é rica e apetitosa, mesmo que se leve em consideração as atuais manias de manjares menos gordurosos e menos doces, e a evolução pós-moderna do gosto por comidas mais delicadas e mais facilmente digeríveis.
Algumas de suas receitas afundam suas raízes na antiga Grécia e a maioria delas sofre de evidentes influências orientais. Não se pode esquecer que Nápoles foi uma cidade fundada por colonos gregos e chamava-se Neapolis (cidade nova) e que árabes e bizantinos foram povos que deixaram marcas bem fortes na cultura de seu povo. Isto pode ser facilmente verificado no que diz respeito à cozinha pela presença do mel e das frutas secas e cristalizadas.
Entre as muitas jóias da doçaria local está a Pastiera di grano. Conta-se que Maria Teresa da Áustria, consorte do rei Ferdinando II de Bourbon – apelidada pelos soldados do exército real de “a Rainha que jamais sorri” – cedendo à insistência do marido glutão, concordou em experimentar uma fatia do doce e não pôde controlar o sorriso que indicou a evidente satisfação graças ao sabor da especialidade local.
Afundando suas raízes provavelmente nas festas pagãs, mesmo que numa forma rudimentar, a pastiera acompanhava as procissões celebrando o retorno da primavera, enquanto as sacerdotisas do culto de Ceres ostentavam o ovo, símbolo da vida que nasce. No que diz respeito ao trigo e ao delicado creme de ricota, pode muito bem ser ligada aos pães rituais preparados com esses ingredientes durante os casamentos romanos. Outra hipótese sobre a sua origem está ligada as fogaças rituais que se difundiram na época de Constantino, o Grande, derivadas das ofertas de mel e leite que os catecúmenos recebiam na sagrada noite da Páscoa, ao final da cerimônia de batismo.
Saída do ambiente religioso, como a maioria dos doces conventuais, graças a algum descuido de uma freira em revelar a preciosa receita a uma mulher civil, a pastiera foi se popularizando tanto, a ponto de cada dona-de-casa napolitana julgar a sua própria receita como a melhor de todas. Digamos que existem duas escolas: a mais antiga delas ensina a misturar a ricota com os ovos batidos; a segunda, mais inovadora, recomenda que se misture um creme branco de baunilha para deixar o doce mais leve e macio. Essa revolução foi devida ao doceiro Starace que era proprietário de uma confeitaria no centro da cidade, na Praça do Município, desaparecida há muitos anos. Porém, numa coisa as escolas de preparação estão de acordo: a pastiera deve ser preparada com antecedência, mas não depois da Quinta ou da Sexta-feira Santas, para que seus aromas se amalgamem, concedendo-lhe aquele sabor único e inconfundível.
A lenda de Partenope e da Pastiera
A mitológica sereia Partenope e suas duas irmãs Leucósia e Ligea (filhas de Achéolos e Perséfone), após a falida tentativa de encantar o herói grego Ulisses em sua Odisséia, se suicidou, morrendo às margens do Golfo de Nápoles. Deixou assim o seu nome de herança para a cidade.
Uma outra versão da lenda, diz que a sereia ficou tão encantada com as belezas do golfo entre a colina de Posillipo e o monte Vesúvio, que ali decidiu fazer a sua morada. Toda a primavera, Partenope emergia das águas para saudar os alegres habitantes do local, presenteando-lhes com cantos de amor e alegria. Certa vez, a sua voz foi de tão grande doçura que extasiou homens e mulheres. Em retribuição ao canto, correram em direção ao mar, comovidos pela beleza de sua voz e pelas palavras de amor pronunciadas pela sereia; decidiram, então, retribuí-la com tudo aquilo que eles possuíam de mais precioso.
Sete dentre as mais belas donzelas do vilarejo foram encarregadas de entregar os presentes à bela Partenope: a farinha de trigo, representando a força e a riqueza dos campos; a ricota, homenagem dos pastores e de suas ovelhas; os ovos, símbolos da vida que sempre se renova; os grãos de trigo cozidos no leite, prova dos dois grandes reinos da Natureza; a água de flores de laranjeira, pois também os perfumes da terra deveriam homenageá-la; as especiarias, representando os povos mais distantes de todo o mundo, e, por fim, o açúcar, como expressão da doçura do canto da sereia que se difundiu pelo céu, pela terra e por todo o universo.
Contente com todos esses presentes ela mergulhou nas profundezas de sua morada cristalina e depositou as ofertas aos pés dos deuses. Os deuses, inebriados também eles com seu dulcíssimo canto, reuniram e mesclaram com arte todos os presentes/ingredientes e criaram a primeira pastiera, que em doçura superava somente o canto da sereia. Parece até oferenda para Yemanjá.
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Textos de Fabiano Dalla Bona
Professor de Língua e Literatura Italiana da UFPR
Doutorando em Letras Neolatinas pela UFRJ
Fontes de pesquisa e imagens: Academia Barilla, Comensais e Alter Kitchen
http://amesaposta.blogspot.com.br
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